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domingo, 1 de março de 2015

A histeria despolitizada com a falta de água; ou a velha e boa manipulação da mídia

Por João Sette Whitacker, no Blog cidadesparaquem.org 
Agora que a ameaça da falta de água se abateu de vez sobre os paulistas, uma histeria coletiva tomou a população que, em sua maioria, curiosamente não deu atenção ao fato há alguns meses, ou não o achou importante ao ponto de impedir que referendasse no primeiro turno o principal responsável por tal tragédia.
Quando a vaca foi pro brejo (sem água) de vez, assistimos a uma sutil, mas como sempre bem orquestrada, despolitização dos fatos. De umas semanas para cá, a questão da água, ao ler a grande mídia, não é mais um problema do Estado de São Paulo, mas do Brasil, senão do mundo. Apressam-se em noticiar que o Rio de Janeiro também está colapsando. Alguns aventaram que a falta de água em SP é causada por desequilíbrios na Amazônia. A seca, sempre ela, ainda é o centro das atenções, embora aos poucos o regime de chuvas de fevereiro e março esteja se instaurando, nem tão fora do normal quanto se anunciou. Até o prefeito Haddad vem sendo culpado por dar mais atenção às bicicletas do que à soluções para trazer água de volta (aviso: o abandono da prioridade ao automóvel é uma das melhores medidas a longo prazo para atender à questão hídrica).
Sutilmente, editoriais e colunistas começam a "despolitizar" a questão no âmbito estadual, para "politizá-la" no âmbito mais geral. São todos culpados, do prefeito à presidenta, o que dilui, evidentemente, as responsabilidades. Eliane Brum, em (bom) artigo recente (clique aqui), chega a escrever, ao desolar-se por não termos uma liderança estadista, que "nosso desamparo é maior porque não temos essa figura nem no governo de São Paulo nem no governo do pais". E continua: "no Planalto, temos uma presidente vendida como gerente (...) mas que se mostrou uma má gerente ainda no primeiro mandato". Não estou aqui escrevendo para discutir de Dilma é boa ou má gerente, sequer para defendê-la. O que quero dizer é que sutilmente se desloca uma responsabilidade muito específica no âmbito estadual para uma dimensão genérica, a "dos governantes em geral", logicamente envolvendo a Dilma. A lógica é clara: se é para afundar o governador por causa da água, que afundem todos no mesmo barco (ou melhor, encalhem, não há mais água). Porém, neste caso, não há por onde escapar: a responsabilidade e prerrogativa da política pública de água em São Paulo, nos mais de 350 municípios que têm convênio com a mesma, é da Sabesp, empresa controlada pelo Governo do Estado, que achou por bem lançar ações na bolsa de NY enquanto que aqui deixava armar-se o mais escandaloso e criminoso colapso de gestão pública de que tenhamos notícias.
É claro que em tempos atuais, a delicada questão da água tem a ver com a escassez da mesma no mundo, tem a ver com as políticas federais, tem a ver com a seca, etc. Porém, que não nos façam de tolos: para além de tudo isso, a crise específica que São Paulo vive é de total responsabilidade do Estado, que formula as políticas, e da Sabesp, que as aplica. Por isso, querer a estas alturas, face à emergência do colapso, levantar todas as outras causas, estruturais e históricas, é um embuste. A seca até pode afetar o sistema, mas um bom sistema tem que ter planejado inclusive a possibilidade de secas.
Ora, o que menos vemos aqui é planejamento. Há alguns dias em seu blog (leia aqui), o jornalista Maurício Tuffani relembrou entrevista do professor de ecologia da USP Paulo Nogueira Neto, que alertava que "a água de SP está no fim" em....1977! Nosso colapso não surgiu do nada por causa de secas (previstas, aliás), longe disso. Há anos e anos que a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) vive o que se chama de "estresse hídrico", ou seja, gasta mais água do que é capaz de obter. Aliás, a RMSP gasta mais de quatro vezes a capacidade de captação de todo o Estado. São, pelo que sei, cerca de 70 mil litros de água consumidos por segundo. Nesse ritmo, com ou sem seca, não há sistema que aguente, embora, como lembraremos adiante, isso não seja nada ao lado do consumo industrial e agropecuário. E os políticos que governaram nosso Estado sabiam disso, há décadas.
É comum as pessoas acharem que não há muito a fazer, que isso é decorrência "natural" de uma urbanização acelerada e caótica. É assim em qualquer lugar, pensam. É um pouco o mesmo raciocínio de quem pensa que a desigualdade social na cidade é fenômeno "normal" decorrente de uma "urbanização acelerada". Não são, nem um nem outro. O gigantismo de uma cidade dificulta sempre as coisas, mas há inúmeras metrópoles que atingiram tamanho gigantesco sem por isso nem ter problemas com água nem apresentar as nossas disparidades sociais. Não, nada disso é "natural": é sim resultado de uma falta crônica de planejamento, de um descaso absoluto do Estado ou, melhor, de um planejamento "as avessas" em que o que se objetivou foi um sistema de privilégio aos mais ricos e de promoção da desigualdade que, algum dia, teria que colapsar. 
Ou seja, diante de um quadro que se evidenciava há tanto tempo, a obrigação do Governo do Estado era só uma: fazer o correto planejamento da política de abastecimento de águas, o que é muito, mas muito mais do que apenas construir um sistema de abastecimento (in)eficiente. Passava por trabalhar a gestão conjunta com os prefeitos da Grande São Paulo, montando um gabinete exclusivo para essa questão; por estruturar políticas de educação cidadã nas escolas, nas faculdades, nas repartições públicas, sobre o correto uso da água e a importância de sua economia; por criar políticas de incentivo ao reuso da água e à captação das águas pluviais em casas e condomínios; por refletir conjuntamente sobre as políticas municipais de regulação urbana para evitar a construção predatória que acaba com as nascentes e impermeabiliza o solo. E, sobretudo, por promover uma regulação do uso fenomenal de água pelas indústrias e o agronegócio, e estruturar uma política de captação de água em outras áreas, mais distantes às vezes, que se adiantasse ao crescimento da cidade, e não levasse o governo a correr atrás do prejuízo.Tudo isso deveria ter sido iniciado há pelo menos dez anos atrás.
Nova York, por exemplo, é famosa por ter realizado um planejamento a longo prazo e criado uma política de captação que vai buscar água puríssima em montanhas a centenas de quilômetros da cidade, sustentando com isso todo um programa de agricultura ambiental mas regiões de captação (leia aqui reportagem do Globo Rural). A cidade compra terras com antecedência, garantindo nascentes para suprir o crescimento da demanda. Enfim, a isso se dá uma nome: política pública bem realizada, planejada a longo prazo. Tudo que não tivemos e nem temos em São Paulo.
Aqui tudo foi bem diferente. Políticas públicas dessa magnitude apresentam a dificuldade de levarem tempo para serem operacionais. Nesse sentido, a possibilidade de continuidade de gestão, sem as interrupções que no Brasil, a cada quatro anos, levam ao desmonte de todas as políticas em andamento feitas pelo governo anterior, é um privilégio político invejável. Ora, o PSDB, ao conseguir manter-se por mais de duas décadas no poder, não tinha a obrigação, mas o dever de aproveitar-se dessa perenidade possível para estruturar políticas únicas no país. É o mesmo caso do metrô. Ao invés disso, deixou colapsar o sistema de abastecimento de água e fez um metrô a passo de tartaruga que hoje é cinco vezes menor que o da Cidade do México (iniciado na mesma época). E a mídia, em seu incrível esforço de blindagem, consegue desviar a atenção para um foco genérico em que a responsabilidade do Estado fica difusa. Um escândalo. Está certo falar da Petrobrás (pintando um quadro em que ela se afunda, o que está muito longe da realidade), mas não está nada certo que metrô e Sabesp, comparativamente, sumam do noticiário. Enquanto se transfere o "problema" da água para questões ambientais globais, a Sabesp, envergonhada, some com seu nome na fachada do cineclube que mantém em Pinheiros. Tenta ser esquecida.   
Aqui, nunca nada foi feito. A água sempre foi dada por abundante, e a Sabesp tratou a questão com soberba. Um exemplo simbólico, mesmo que menor, da sua maneira de agir: há vários anos, em Pinheiros, um prédio alto de luxo construiu tantos subsolos que a água do lençol freático, desviada, começou a brotar permanentemente na calçada. Seus moradores pensaram em um sistema para recuperá-la e utilizá-la para lavagem das áreas comuns e da própria calçada. Foram proibidos pela Sabesp, sob pena de multa. A água jorra até hoje. Mas a falta de planejamento é muito mais grave do que esse fato corriqueiro. Poucos sabem que o uso doméstico de água no Brasil corresponde a menos de 10% do total, e que aqui também a maior parte da água fornecida pela Sabesp vai para uso industrial e para o agronegócio. Mas nunca foi apresentado à sociedade um plano de longo prazo, sobre o consumo e a responsabilidade dessas empresas, que estas sim consomem MUITA água. Quase 2 milhões de metros cúbicos ao mês. E sequer se sabe quanto elas pagam ou quanto gastam, a Sabesp dando-se o direito de recusar, em mais um ato escandaloso, a difusão dessas informações (leia aqui). Então, é claro que é importante você economizar água na hora escovar seus dentes, mas, convenhamos, soa pequeno se sequer sabemos o que as empresas, as grandes consumidoras, estão de fato fazendo nesse sentido, em processos que representam alguns milhões de escovações.  
A Sabesp, aliás, perde mais de 30% da água que distribui, boa parte em vazamentos de seus canos. Verdade seja dita, esse é um problema de difícil controle e solução, e é assim em muitos países (a França tem perdas de cerca de 20% - veja aqui - e o Canadá, sujeito a variações térmicas fenomenais, de cerca de 15%). Mas cobrar do cidadão apavorado multa de R$ 1000,00 de quem desperdiçar água, como votaram os vereadores de SP recentemente, sem votar ao mesmo tempo ao menos uma campanhazinha de conscientização, quando a própria empresa não consegue resolver seu enorme desperdício, soa injusto.
Outra argumentação que de repente volta ao noticiário como grande vilã da falta de água é a da "urbanização predatória" de São Paulo e sua região metropolitana. É a pura verdade, mas, no meio dos urbanistas do qual faço parte, há décadas que alertamos sobre os efeitos maléficos da urbanização descontrolada, em que o mercado da construção civil faz mais ou menos o que quer onde quer, sem que seja dada lá muita atenção ao nosso esforço. Impermeabilização do solo, construção irrestrita com subsolos ambientalmente criminosos (como os andares de estacionamentos dos shoppings), desarborização, etc, etc, são atos que de fato têm consequência, irremediavelmente, sobre a permeabilidade do solo e o escoamento das águas, afetando a captação pelos rios e a alimentação dos mananciais.
Mas isso vem ocorrendo há anos, e quando apontava-se para o fato, ninguém deu muita bola. Prova disso a relativa indiferença que causou aos paulistanos um dos maiores escândalos já vistos nesse âmbito, que implicou muito de perto o nosso atual Ministro das Cidades. Sob sua gestão, o Diretor Geral de Aprovações da cidade montou uma verdadeira máquina de propinas para negociar novos empreendimentos. Até hoje não se foi a fundo nessa investigação, que curiosamente sumiu do noticiário (seria porque o ex-prefeito é agora ministro?). Os paulistanos pouco se opuseram ao estranhíssimo fenômeno de geração espontânea de shoppings na cidade (mediante bons pagamentos, como denunciou gente de uma das construtoras), ocorrido ao longo da última gestão, sem querer atentar que, ao mesmo tempo que garantem suas compras e finais de semana enclausurados, esses edifícios gigantescos contribuem, e muito, com a tal "urbanização predatória" e a falta de água.
Então, a histeria que agora tomou conta da cidade é um pouco deslocada, principalmente quando vêm das classes mais altas, que mais contribuem para o consumo de água (os grandes condomínios, mansões, carros a lavar, etc. etc.). Ao acusar tudo e todos, escamoteia o principal. Sim, nossa urbanização e nossa sociedade elitista e hiperconsumista ajudam para acabar com a água do mundo, mas nosso problema é um grave e inaceitável fiasco local de gestão, cujas responsabilidades devem ser cobradas. Dizem que em Araçatuba uma senhora atirou o carro contra outra moça que lavava a calçada. "A água do mundo está acabando!", gritou (sem sequer saber se a água da lavagem por ventura não era, por exemplo, de reuso, e sem atentar para o a insustentabilidade do uso do carro - talvez para ir ao shopping). A falta de água no mundo substituiu no imaginário coletivo a incompetência e improbidade da Sabesp e do Governo do Estado e suas secretarias.
Também é verdade que governo federal e municípios têm sua parte de responsabilidade, já que parte da gestão é compartilhada (como no caso do sistema cantareira em que algumas das represas são de gestão federal) e que a competência sobre o uso do solo é municipal. Mas, ainda assim, não se pode equiparar o nível de responsabilidade de cada um.Os Comitês de Bacias Hidrográficas, criados em 1988 junto com o Sistema Brasileiro de Gerenciamento de Recursos Hídricos apontaram um bom caminho para a gestão das águas. Mas, como muitas coisas em nosso país, salvo poucas exceções, se perderam nas disputas políticas e na burocratização.
É claro que precisamos economizar. É claro que este tipo de problema, quando se torna tão grave, passa a depender da ação individualmente responsável de cada cidadão. Mas, como sempre, a falta d´água os afetará de maneira bastante desigual. Os bairros ricos, consolidados,de baixa densidade habitacional, com caixas d´água enormes e funcionais, sobreviverão com algum desconforto ao racionamento e não terão problemas em comprar caminhões-pipas se necessário. Os mais pobres, porém, é que sofrerão, como diz a urbanista Marússia Whately em excelente texto (clique aqui):
"Uma coisa são cinco dias de racionamento em bairros consolidados e bem estruturados do centro expandido, com situações mais previsíveis. Outra coisa, bem diferente, é o racionamento em locais como a zona leste, com áreas inteiras de ocupações informais, poucas caixas d’água, vários moradores por casa, pessoas que costumam sair muito cedo para o trabalho e retornar às vezes muito tarde por conta do tempo no transporte (o que pode significar não estar em casa em nenhum horário de fornecimento de água)".
A prefeitura tem seu papel nisso. Já começou a agir quando reuniu os prefeitos da Região Metropolitana para emanar uma posição comum. Será melhor ainda se elaborar um plano de contingência e regular a maneira como se dará o uso racionado na cidade. Melhor seria se dispensasse de vez os serviços da Sabesp, municipalizasse o sistema e estruturasse uma política de gestão autônoma em parceria com os municípios da Região Metropolitana (melhor eu parar de sonhar). É claro que todos nós devemos nos envolver nesse mutirão de contenção. Mas uma coisa deve ficar clara: tudo isso são esforços meramente conjunturais, e não resolverão a situação da cidade, mesmo que comece a chover. Vale reiterar: falta água no mundo, mas o que estamos falando aqui é da falta de água na metrópole paulistana em decorrência de um colapso de gestão. São coisas bem diferentes. E a economia individual de cada um ao escovar os dentes e tomar banho, coisas que deveriam ser práticas preconizadas por políticas de conscientização da Sabesp há tempos, poderão ajudar um pouco, mas não resolverão o problema.
A grande questão é saber qual a "solução" que está por vir. Pois uma coisa é pouco falada: a Sabesp, como empresa com ações na bolsa de NY, com 51% delas em poder do Estado de São Paulo, é uma empresa quase privatizada. A desmoralização que ela enfrenta, por sua incapacidade de gestão, tem poder para abater o preço de suas ações, e até para ser condenada pela justiça norte-americana. Um passo muito pequeno para que surja, em uma sequencia quase previsível, o discurso de uma necessária e "eficaz" privatização total. Sabemos que companhias de águas - em especial europeias - interessam-se e muito pelo mercado brasileiro, o que dizer então da uma das maiores metrópoles do mundo. Quem viu o documentário "The Corporation" (recomendo) sabe do exemplo histórico de Cochabamba e o modus operando dessa empresas. Se estamos mal, ainda estamos longe de onde se pode chegar na privatização da água e sua transformação em mercadoria, escassa para os mais pobres.
Enquanto isso, o esforço genuíno dos cidadãos, responsáveis por pequena parte do uso total de água,  e que parecem resignar-se com a situação, soa ainda mais ineficaz enquanto o Governo e a Sabesp não apresentarem um plano - público - de curto, médio e longo prazos para a recuperação da capacidade de provisão de água na metrópole. O que passa, evidentemente, por indicar o que está sendo feito para conter os 70% da água fornecida para uso industrial e para o agronegócio. Senão estamos fazendo papel de bobos. E ao mesmo tempo ajudando, ao assimilar sem protestos uma campanha erroneamente centrada no usuário comum e na sua "culpa" pelo desperdício, a fortalecer a blindagem que, espantosamente, protege o governo e sua empresa de água. A cidade pode sim ter água, e temos o direito de saber como isso será feito. O que me espanta é que São Paulo tenha mostrado energias para uma maravilhosa e histórica mobilização contra 20 centavos a mais no preço dos ônibus, mas parece resignar-se à economizar água sem mover uma palha para protestar contra o descalabro de terem deixado secar a quarta maior metrópole do mundo. 
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Pós-Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ); Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá (PGE-UEM); Pesquisador do Grupo de Estudos Urbanos (GEUR/UEM) e do Observatório das Metrópoles (UFRJ e UEM). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR); Consultor da UNESCO/MEC; Conselheiro no Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial (CMPGT) de Maringá (PR) e Delegado da Assembléia de Planejamento e Gestão Territorial 5 (APGT-5) de Maringá (PR).
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